domingo, 24 de abril de 2011

Hotel Central II

Era quase 1 da madrugada e qualquer um daria um segundo de sua vida para saber o que aquela garota fazia tão sozinha, deitada naquele telhado. A luz lunar naquele ambiente refletia uma imagem inusitada: um mar de telhados, uma garota branquíssima de longos cabelos negros e, pasmem! Um cão. Acho que o cachorro era dela, não sei. Só pode! Fiquei pensando que paradoxalmente àquele único sinal de vida que se banhava na luz lunar vinda do céu e refletida no telhado, a cidade dormia e nem via o que acontecia.

Penso assim por que adolescentes são seres sociáveis mas que ainda vivem sob as regras dos pais. Chegam em casa sem passar das 10 e suas vidas têm hábitos e horários convencionais.

Bom, quis ficar mais na minha posição, ali meio que distante, sendo, certamente, a única testemunha daquela cena. Havia também uma música que vinha de um rádio lá, colocado no parapeito da janela aberta. Devia ser o apartamento da garota, afinal, a menina tinha que vir de algum lugar, não? Ninguém aparece simplesmente em um telhado, na madrugada, tão distante de casa. A garota poderia muito bem ser uma hóspede ou filha do proprietário do Hotel Central.

O cãozinho parecia se sentir bastante familiarizado com o lugar. Num instante ele corria por um monte de telhados de diferentes modelos.

Cheirava aqui e acolá e de vez em quando ele parava, meio que tipo esperançoso de encontrar ...um gato, talvez? Sei lá.

A garota tira um objeto arredondando como uma cabeça, de dentro de um saco branco. Ajeitou aquilo e depois se pôs a olhar como fazemos quando olhamos o espaço através de um telescópio. Assim ela ficou um bom tempo. Depois, como que preocupada em saber onde estava seu pupilo, ela chama: Mike!

O bichinho veio que nem foguete. Quando chegou perto da menina, fez umas gracinhas. Deu-lhe uma simpática lambida nas mãos e voltou, todo empertigado, querendo mais emoções naquela superfície estranha.

A noite estava agradável. Perfumada, como só as noites de lua cheia são.

Próximo dali, na praça da cidade ficava a igreja com sua torre imponente e nela havia um relógio daqueles antigos, que mostrava as idas da madrugada alta.

A lua já iniciava seu arco descendente, típico das duas horas.

_ Amanhã, ou melhor, hoje, vou precisar sair pra resolver umas coisas. Mas não consigo desgrudar desse telhado. Preciso ver o que vai acontecer.

A garota continuava lá, de olhos bem abertos, fitando o céu e parecendo querer descobrir o mistério das estrelas e de seu Pai. Que delírios seriam esses? Quais eram suas emoções, considerações? Por que ali? E numa hora daquela?

Nem bem terminei de considerar minhas curiosidades e a mocinha foi se levantando. Fiquei apreensivo com a possibilidade dela escorregar, cair dali, ou mesmo de o aparelho rolar telhado abaixo.

Mas nada disso aconteceu. Ela, com um tipo que dominava os mistérios do telhado, deu um ligeiro e baixo assovio e o cachorrinho veio, com a língua de fora, denunciando o cansaço de tanto brincar.

Os dois foram caminhando em direção à janela e do rádio vinha a canção "Strawberry Fields Forever", dos Beatles.
Na seqüência, o Big Boy, da Mundial, anunciava que a programação ia chegando ao fim.

"Fim do programa, baby"!!!!!

No dia seguinte, ainda encafifado com a cena da madrugada, sai pra resolver minhas coisas. Sabia que ia ser um dia cheio e que provavelmente tão cedo não iria chegar em casa.

Quando foi tipo 4 da tarde, qual não foi minha surpresa ao reencontrar a garota do telhado. Desta vez, sentada no banco da praça, como é tão comum em cidades do interior. O cachorrinho também estava lá.

Interessante pensar na solidão daquela menina na cena do telhado e observar que agora também ela se mantinha isolada. Em volta havia dezenas de adolescentes. Elas todas muito arrumadinhas e, detalhe: usavam uma sandália muito parecida. Os rapazes também possuíam um estereótipo comum e o assunto deles me pareceu tão enfadonho quanto uma tarde de serviço pesado depois de almoçar uma feijoada.

Vi que a menina carregava consigo um livro pra lá de amarrotado, desses de edição barata, comprado em bancas de revista.

De repente ela se ajeita pra começar a ler. O título era "Sidarta", de Hermann Hesse.
Saí dali mais ou menos entendendo aquela situação. À noite, eu no meu quarto alugado a preços módicos para viajantes, fui para a minha janela e fiquei alí, à meia luz, à espera da garota. Ela não apareceu.

No dia seguinte, depois de fazer a praça, esquentei o motor do meu fusca e fui vender noutra freguesia.

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